Perfeitos


Olhou seu reflexo uma última vez e agradeceu, fazendo a garota com sardas se afastar, levando consigo o espelho. A um sinal de James, ela se posicionou rapidamente. Não precisava pensar, era automático. Um aceno de cabeça e flashes a cegaram por alguns instantes. Era como um bombardeio, a atingiam por todos os lados. Poucos minutos depois, durante a pausa, ele chegou no estúdio cumprimentando a todos e se posicionou ao lado dela, atraindo seu olhar. Juntou as sobrancelhas, sentindo uma angústia inundar sua mente. Ele não parecia real. Um sorriso largo estampava seus lábios. Largo demais. A mesma garota de sardas passou um algodãozinho para limpar o borrado da sombra nos olhos dela, mas o algodão não limparia a sensação de sujeira que a invadia, de dentro para fora.


Ele era o pior erro que cometera. Como pudera ser tão fria a ponto de fazer isso com ele? Destruíra tudo que nele mais admirava. Sua paixão e humanidade, coisas que ela não conhecia, coisas que não mais o pertenciam. Mas ele não tinha notado a diferença, ainda. Porém, mais cedo ou mais tarde, notaria. E ela estava condenada a ver a cena, e a aceitar o amor que ele na verdade não mais sentiria.

James se posicionou atrás da câmera e os outros se afastaram, deixando os dois nos holofotes. Como sempre. Apenas quando ele passou o braço em volta de sua cintura, com um sorriso caloroso, ela percebeu. Aquele não era o sorriso que ele costumava dar ao vê-la, fora substituído e este nunca mais voltaria. Não retribuiu o sorriso. Talvez porque estivesse angustiada demais, ou por James ter pedido para que ele ficasse sério para a foto. Os lábios dela se alargaram a pedido do fotógrafo e percebeu o quanto estava cansada daquilo. Seus olhos ardiam por baixo da máscara de cílios e suas bochechas doíam, formigantes.

"Vocês estão perfeitos"

Um sorriso se abriu atrás da lente. Um nó se instalou na garganta da garota. Odiava essa palavra e tudo que ela representava. Olhou em volta do estúdio com um bom número de pessoas, notava os suspiros e sorrisos sonhadores. Se lesse os pensamentos deles, com certeza estariam cheios de ''queria ser ela'' ou ''como ela é perfeita. Por que não nasci assim?'' Mas não precisava, estava óbvio. Por toda sua vida aguentou esse fardo — a perfeição —, até mesmo quando não sabia que era um fardo, e não uma bênção. Se eles soubessem... Se pudesse avisá-los para terem cuidado com o que desejam. Por um momento, os invejou. ''Eles não veem o quanto é bom poder errar? Poder ficar um dia inteiro de pijama de ursinhos por que não irão sair o dia inteiro? Ou não ter que sempre ser educada, gentil, sorridente e aparentar estar feliz?''  Não, eles não sabiam. Assim como não sabiam o quanto a perfeição era cruel, entediante e imperfeita. Todos aqueles saltos, maquiagens... Tudo era tão superficial, tão raso.

Naquele momento, questionou o por quê de se preocuparem tanto com sardinhas no rosto ou linhazinhas no canto dos olhos, criarem cirurgias mirabolantes e caras, a verdadeira doença, a epidemia catastrófica, a ruína desde os tempos mais remotos, é a perfeição. Aprendera isso, da forma mais difícil. Mas ela não teria como voltar. Ela assistia as pessoas ao seu redor envelhecerem, construírem famílias e morrerem. Enquanto ela fazia os exames finais do colégio talvez pela septuagésima vez consecutiva. Sua vida não era tão colorida quanto os esmaltes que usava nem ela era tão animada quanto parecia, na verdade, ela própria era bem oca e sem vida. "Apenas um saco de ossos ambulante."

E, agora, ela havia condenado ele, a isso também. Uma vida de aparências e glamour, ano após ano. Ela queria tê-lo, e conseguiu. Da forma mais injusta e suja possível, mas o fez, assim como conseguia várias outras coisas. E nem sempre ela realmente desejava tal coisa, mas seus impulsos de ser a melhor, a mais inteligente, a mais linda, a mais simpática, a vencedora, a faziam ganhar. Em tudo. Não seria um mero ele que escaparia disso. Mesmo que para ela, ele não fosse um ''mero''. Entretanto, isso não importava mais.

Era uma questão de tempo. Ele logo perceberia o quão vazio era aquele mundo. E a odiaria. Aí sim, os últimos sentimentos genuínos dela morreriam. Mas já seria tarde demais. Já estava condenado a passar o resto de sua vida junto a ela, dando a ela um amor de mentirinha, acorrentado àquela maldita palavra: perfeição.

Conforme pedido, os dois ficaram de frente um para o outro e tocaram-se no rosto. Pela câmera de James, foi eternizado o momento em que ela olhava-o bem de pertinho, fitando uma das coisas que mais amava nele: seus olhos e o infinito que cabia dentro deles, um brilho como uma lanterna para sua alma vazia. Mas, suas esperanças de buscar um pouco de paz viraram cinzas. Seu coração se apertou, como se pudesse sentir ele sendo arrancado à força de dentro dela. Ele não mais tinha a lanterna, não mais cabia o infinito nos olhos de uma pessoa tão... finita.

E foram perfeitos para sempre. 

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